Quando a velha índia, onça astuta, de costura dourada e negra no pelo reluzente, poupou o corajoso caçador, um pacto qualquer se fez, sem graça ou esperança. De um lado do Araguaia ficou o homem, ambicioso como todos os outros que, em sua sorte de homem, encontrou o sustento em matar pelo couro. A onça, por sua vez, que havia deixado a forma humana para findar seus dias como entidade, ao falar aceitou a premissa e cruzou o rio, submissa e honrosa. É a mais pura verdade, acreditem! Nonatinho viu tudo, com seus amigos botos. Mas isso foi muito depois da batalha que travou com a serpente gêmea, a qual derrotou com ajuda dos comparsas. O nego d’água, apreciador do fumo forte, ainda se esconde nos pedrais e da noticia de tudo. Acreditem. Não há brilho da lua que não se reflita no remanso e não reconte a paixão do Nego Veio por seu cavalo ligeiro. Amanhecerá todo dia até que um dia não mais. Há quem duvide, há quem tenha certeza e há quem nem mesmo saiba. Não saber é um direito que é tomado. Sem saber não há mesmo como acreditar ou duvidar. Se as histórias não se contam sozinhas, resta aos contadores essa nobre missão.
Este trabalho resgata lendas e mitos que o povo conta em Araguatins. Com a rica contribuição de moradores de Araguatins e do Quilombo Ilha de São Vicente, o apanhado de histórias locais se desdobrou, nesse projeto, em leituras, contação de histórias por meios de ilustrações, uma revista digital e culminância com uma exposição presencial. O projeto teve um viés pedagógico, uma vez que as partes prática e objetiva foram direcionadas aos alunos da rede municipal de ensino, de maneira que siga contribuindo para o desenvolvimento das habilidades leitoras dos estudantes do ensino fundamental anos iniciais, como opção de material pedagógico. O resultado deste trabalho, contudo, vai ainda mais além, pois abrange toda a memória da comunidade, por meio da oralidade preservada. A história, como se sabe, possui valor inestimável.
Preservar o imaginário popular é uma forma de preservar também o autoconhecimento de um povo. Todo o emaranhado de histórias, lúdicas ou reais, que envolvem uma comunidade, nos ajuda a descrever e a compreender a realidade. Que é local, mas também universal, pois, ora, quantos séculos se fizeram de contações? Mães e filhos, velhos e jovens, continuando, pela palavra falada, o movimento de vida a qual chamamos humanidade. A humanidade está à beira do Araguaia, junto a tudo que ela toca e transforma. Em seu bem e seu mal, beleza e tristeza, compreensão e mistério. Não tentamos aqui comprovar ou destrinchar as narrativas, apenas respeitá-las, como entidades que são. Passam de boca em boca, percorrem os ouvidos e retumbam em tímpanos, movem diafragmas e pupilas, algumas vezes acompanhadas por uma dose de cachaça que queima forte, ou de um enfieiro de piaus, assados à beira do rio. O rio leva e traz, é estrada sem começo, sem fim. Os ribeirinhos, como as palhas dos babaçus, se movem com o vento. As canoas se desprendem misteriosamente, algo as resgata. Ninguém explica. Não é preciso. É preciso alguma coisa nesse mundo tão vasto de meu Deus? As palavras, talvez, superarão as humanidades. As guardemos então.
Lucinalva Ferreira, Davino Pereira Lima Júnior, Osmar Dantas, Agna da Silva Gomes Santos, Sirleide Lopes Martins Dantas, Laiany Paulino de Queiroz, Vitória Maria Tavares Lima, Luemily Karine Saraiva de Sousa, Juliana Déborah Oliveira da Silva, Laila Jaqueline Santos Claudiano, Ana Paula Oliveira Borges, Andressa Silvino de Sousa, Letticya Silvestre Carvalho.